quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Enquanto Isso...

Como era empolgante ver a legião de super heróis reunida na Sala da Justiça elaborando ideias e projetos para o bem da sociedade. Mesmo sabendo que se tratava apenas de um desenho animado, meus coleguinhas e eu ficávamos curiosíssimos para saber quais seriam as argumentações que o Batman e o Super Homem apresentariam para resolver as crises que se apresentavam a cada episódio. Aliás, independente de suas teses, já nos era satisfatório ver as capas de super herói que eles vestiam e o ambiente de poder que predominava naquela sala que mais se parecia com um tribunal do bem, dos quais também participavam o Aquaman, a Mulher Maravilha e outros. É interessante lembrar o quanto a oratória que os nossos justiceiros apresentavam na Sala da Justiça sempre nos convencia de que eles realmente eram corajosos, justos e muito preocupados com o bem estar da sociedade.
Mas quando eu adolesci, passei a levantar alguns questionamentos sobre este contexto que tanto me fascinava. A primeira dúvida se deu quando percebi o quanto aqueles heróis viviam distantes do povo, dando até a impressão de que pertenciam a uma elite social e humana mais elevada, meio que acima do bem e do mal, tipo “semideuses”. Tanto é verdade que passavam a maior parte do tempo confinados numa sala muito confortável e totalmente isolada da ralé, discutindo os assuntos e medindo seus poderes de persuasão sem conhecer a real opinião dos cidadãos. Lembro que eles só se tornavam acessíveis à população no momento em que faziam suas performances diante das câmeras de TV na captura de algum delinquente pelas ruas da cidade. Aí eles davam um show. E mesmo assim algumas pessoas tinham certa dificuldade em reconhecê-los como parte integrante da comunidade, como costumava acontecer com o Super Homem, por exemplo. Não sei se você se lembra disso: “É um pássaro? Não, não parece um pássaro. Será que é um avião? Não, também não parece um avião. Pô, então que treco é esse voando em nossa direção? Bem, se não é um pássaro nem um avião deve ser o Super Homem”. Outra estranheza da minha parte foi notar que a atividade da Liga da Justiça se resumia apenas a prender criminosos, deixando de cumprir sua principal finalidade: promover a justiça propriamente dita. Logo, embora os membros da Liga agissem como uma tropa de elite combatendo marginais, continuavam convivendo numa boa com a corrupção, a injustiça e a opressão presentes nos bastidores da sociedade. Em outras palavras, enquanto o esquadrão Marvel se dedicava a enfrentar maníacos e vândalos malucos pelas ruas, deixava as máfias, os cartéis, o crime organizado e o governo à vontade para explorar a população; estes últimos vilões nem apareciam nos episódios. Isso foi me desiludindo a cada dia até que não mais me encantei com a célebre frase: “Enquanto isso... na Sala da Justiça”.
Infelizmente, minha maior decepção foi descobrir que coisas semelhantes às que eu mencionei também acontecem na vida real. Após ouvir relatos e mais relatos sobre escandalosos descasos da justiça brasileira, e diante da constante cobertura que os canais de televisão vêm dando ao julgamento do mensalão, não tenho dúvida alguma: A Sala da Justiça existe de verdade! Eles estão lá, como se fossem “semideuses”, vestidos com suas capas de herói, parecendo até, de relance, uma convenção de Batmans numa sala confortável e isolada da ralé, dando um show na frente das câmeras de TV ao discutirem e desfilarem suas vaidades, retóricas, oratórias e poderes, sem realmente conhecer as dores do povo nem se importar com as injustiças que sofremos.
Enquanto isso... do lado de fora da Sala da Justiça brasileira, dezenas de pessoas são sacrificas todos os dias nas grandes cidades, longe das câmeras de televisão. Enquanto isso... bem distante da Sala da Justiça, milhões de aposentados, pensionistas e contribuintes do INSS são humilhados pelos cartéis do Governo, longe das câmeras, é claro. Enquanto isso... nas escolas, nos canaviais, nos bancos, nos hospitais, nas corporações e em diversos outros lugares semelhantes a estes, trabalhadores honestos são explorados e tratados como marginais, delinquentes e foras da lei. Nas Salas da Justiça brasileira, e diante das câmeras de TV, até podemos ser convencidos de que os nossos pretensos heróis realmente são destemidos, justos e muito preocupados com o bem estar da sociedade. Mas enquanto isso, fora da Sala, quem dá o show e bota pra quebrar mesmo no Brasil é a legião de Pinguins, Charadas e Coringas, que estão detonando nosso povo e nosso país; e nem sinal dos nossos heróis nessas situações.
Dias atrás, parei ao lado de um cidadão que estava olhando pro céu e esperando ansioso por alguma intervenção da Justiça brasileira. De repente ele avistou algo e me perguntou exclamando: “É um pássaro?!” Aí eu respondi prontamente: “Claro que é um pássaro, seu tonto! Ou você pensou que fosse algum herói de capa preta sobrevoando você para defender os seus direitos?”. Antes de me despedir daquele sujeito ingênuo, eu ainda recomendei: “Se eu fosse você sairia logo daí antes que este pássaro dê uma cagada na sua cabeça, como geralmente acontece com os cidadãos comuns fora da Sala da Justiça: a gente espera pelos nossos direitos e acaba recebendo outra coisa dos tribunais”.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Carrinho Ajeitado


No início da fase adulta, tornei-me proprietário de um Fusca amarelo, bem amarelo, diga-se de passagem. Tratava-se de um veículo simples e muito limitado em matéria de conforto, potência e beleza, de modo que se tornava motivo de piadinhas em diversas ocasiões. Mas era ele que nos levava ao trabalho e à escola nos dias de chuva que, outrora, causavam-nos tanto transtorno. Era o Fusca que facilitava nossa locomoção na cidade grande em que morávamos, permitindo-nos cumprir os horários e aproveitar bem o tempo, livrando-nos das longas esperas nos pontos de ônibus. E, apesar dos seus mais de vinte anos de uso, era o “canarinho”, um de seus codinomes, que nos conduzia nas viagens realizadas uma ou duas vezes mensais num raio de até duzentos quilômetros. Estas e outras coisas fizeram com que o já cansado e limitado Fusquinha amarelo fosse muito querido e tivesse grande valor para nós, fato que nos motivava a mantê-lo sempre limpinho e, dentro do possível, em bom estado, usando ainda de bastante paciência para com ele quando não atendia a todas as nossas expectativas. É interessante notar que o apreço que tínhamos pelo carro era tão marcante que parecia inspirar outras pessoas a terem a mesma afinidade por ele, fazendo com que várias delas, sem mais nem menos, chegassem perto do Fusca, colocassem a mão em sua lataria e dissessem: “Carrinho ajeitado, hein?!”. Pra nossa surpresa, foram muitas as ofertas que pessoas conhecidas e desconhecidas fizeram para comprá-lo, apesar das críticas e zombarias de alguns. Ficávamos bem contentes com esta demonstração de apreço. Até que um dia a gente vendeu o “canarinho”.
Bem, muito tempo se passou e não faço ideia por onde ele anda agora, mas sei que sua imagem rodou bastante em meus pensamentos nestes últimos meses, especialmente quando eu mesmo me senti como um Fusquinha amarelo com mais de quarenta anos de uso, cansado e muito limitado em matéria de conforto, potência e beleza. Minha lataria já não brilha como antes, aliás, parece que já está enferrujando. Meu motor não rende como rendia no início. E se eu aumentar a velocidade ou o peso, minha estrutura range e estala. Assim, a sensação é de que estou  desvalorizando a cada dia, especialmente diante de algumas situações recentes nas quais também  fui motivo de piadinhas e risos, como acontecia com o "canarinho". Porém, mesmo com tais características desfavoráveis, ainda tenho sido útil para, com a graça de Deus, abrigar pessoas nas tempestades e transportar vidas de situações adversas para realidades melhores. Mesmo devagar e sem conforto, coopero para que corações e famílias cheguem ao seu destino, favorecendo a viajem de muita gente, semelhante ao que meu Fusca fazia. Além disso, percebo que, para minha surpresa, ainda há pessoas que se aproximam de mim, colocam a mão em meu ombro e proporcionam uma relação de apreço muito especial, usando de muita paciência para comigo quando não atendo às suas expectativas e necessidades.  Elas sabem que eu não posso lhes oferecer muita coisa como antes, mas é como se tocassem a minha lataria e dissessem a meu respeito: “Carrinho ajeitado, hein?!”. Eu fico contente. Puxa! Que legal! Tô na estrada! Tô rodando! Bi-bi!!!!
Coisas assim podem acontecer com qualquer um de nós. Então, mesmo que você se sinta como um carro limitado e desvalorizado, procure se manter em ordem e, na medida do possível, em bom estado. Ainda tem muito chão pra você rodar e muita gente pra ir com você. Lembre-se que o mais importante não é ser super potente, belíssimo e confortável, mas sim andar na estrada certa e chegar ao seu destino em paz e segurança. Isso pode fazer com que um carro velho, limitado e cansado se torne um carrinho ajeitado e turbinado com o apreço e o carinho de muita gente.