quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Aos Pés do Soldado

Uma das cenas bíblicas que mais mexem comigo é o apedrejamento de Estevão, um homem simples, decente e autenticamente cristão, que foi brutalmente assassinado por alguns de seus compatriotas porque pensava e agia um pouco diferente deles. Durante muito tempo, o seu linchamento e a visão dos céus abertos na hora de sua morte foram para mim os principais aspectos deste episódio, mas, de três anos pra cá, passei a notar a relevância de outra perspectiva considerada periférica pela maioria das pessoas. Refiro-me ao fato de Estevão ter sido assassinado mediante o consentimento de um soldado, Saulo, cuja responsabilidade era manter a ordem e garantir a segurança, entre outras coisas. Saulo presenciou a violência contra Estevão e nada fez para impedi-la (Atos 7.54-60). Caprichosamente, o texto bíblico registra que as roupas ensanguentadas da vítima inocente foram depositadas aos pés deste soldado, o que o torna testemunha da agressão e aponta para a sua omissão de socorro, o não cumprimento da função e a cumplicidade no crime em questão. Infelizmente, situações semelhantes a esta continuam acontecendo em nossos dias, quando pessoas são perseguidas, retaliadas, discriminada e violentadas injustamente sem que as autoridades responsáveis se posicionem publicamente para promover a justiça e a verdadeira paz. Pior do que isso só mesmo quando as autoridades tomam partido em favor do agressor, distorcendo o sentido dos fatos e transformando a vítima em culpada.
Bem, violência e retalição seguidas de indiferença e injustiça podem jorrar dos mais variados contextos, até mesmo  de onde normalmente se espera um pouco mais de lucidez, responsabilidade, discernimento, equidade, dignidade e bom testemunho, como escolas e igrejas, por exemplo. Porém, em alguns destes casos, o que se vê são as mesmas características lamentáveis presentes no apedrejamento de Estevão, sobre as quais quero tecer alguns breves comentários. Para fazê-lo, importa levantar a seguinte questão: Por quais razões o soldado Saulo consentiu no linchamento de um homem decente, inocente e autenticamente cristão?
Ora, Estevão não tinha nada para oferecer a Saulo; ele não era influente, não era bem sucedido financeiramente e não tinha parentes importantes. Pelo contrário, na condição de cristão, Estevão representava uma minoria marginalizada naquela sociedade, alguém que vivia e pregava uma nova ordem de vida, fato que incomodava as classes dominantes e a multidão manipulada por elas. Portanto, intervir no seu linchamento para defendê-lo significaria entrar em conflito com a elite e com a opinião pública, sem que houvesse qualquer lucro ou vantagem nisso. Nesse contexto é que Saulo, autoridade responsável por promover a ordem e a segurança, prefere se omitir e deixar que Estevão fosse visto como responsável pelo tumulto e culpado pelo seu próprio linchamento. Afinal, se Estevão tivesse calado a boca e ficado no seu canto nada daquilo teria acontecido e tudo seria evitado. Mas as suas roupas ensanguentadas aos pés do soldado falam por si mesmas, e, assim, revelam que Estevão foi uma vítima inocente e indefesa, molestada e assassinada covardemente por um grupo de pessoas sob a proteção e conivência de outras, o que poderia configurar, nos dias de hoje, formação de quadrilha, lobby ou cartel, facções que agridem os outros, enganam as pessoas e distorcem os fatos para mascarar suas próprias falências, coibir as possibilidades de mudanças e, a qualquer preço, preservar as vantagens pessoais, como emprego, lucratividade, proeminência, enfim, todo o status em vigor.

Bem, como essas coisas não mudam e nunca vão mudar, e uma vez que as portas da liberdade e da justiça parecem fechadas aqui na terra, resta aos inocentes que são apedrejados injustamente curtir a visão das portas abertas nos céus, como aconteceu na morte de Estevão. Ufa! Pelo menos isso! Ter a chance de subir aos céus e viver aos pés de Deus depois de sofrer e morrer aos pés de um soldado ou de qualquer outra autoridade. Ainda bem que as quadrilhas, lobbys e cartéis não estão no céu para apedrejar a gente!

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