sexta-feira, 23 de maio de 2014

As Viúvas da Justiça

No texto bíblico de Lucas 18.1-8, o evangelista apresenta a “parábola do juiz iníquo” com o principal propósito de revelar a importância de recorrermos à intervenção divina face às aflições que enfrentamos neste mundo.
É imprescindível notar que, ao tratar das aflições que nos oprimem, o autor utiliza a imagem de um magistrado: “Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus nem respeitava homem algum”. Tal frase indica que os juízes daquela época se consideravam como que superiores ao poder divino e aos poderes constituídos na terra, como se os magistrados fossem intocáveis, inquestionáveis, todo-poderosos etc. Na mesma direção, o evangelista menciona que aquele juiz iníquo não se importava com a causa das pessoas menos favorecidas, desamparadas e que não tinham nada para lhe oferecer em troca: “Havia na mesma cidade uma viúva que insistia para que o magistrado julgasse a sua causa, mas ele não a atendia...”. Ora, se o Judiciário não levava em conta nem a pessoa de Deus nem os demais poderes à sua volta, muito menos se importaria com aquela pessoinha insignificante que, por ser mulher, viúva e pobre, representava um dos segmentos mais fracos e menos favorecidos daquele contexto.
Uma pergunta apenas: Seria obra do acaso o fato de a Bíblia associar a aflição e o desamparo do povo à atuação dos magistrados? É óbvio que não! A exegese de Lucas 18.1-6, somada ao que temos visto no Brasil, nos permite concluir que o Poder Judiciário dos dias de hoje, nas mesmas palavras de Lucas, também parece não temer a Deus nem respeitar a população como deveria, especialmente quando se trata de valorizar e atender a causa das viúvas, isto é, dos inocentes menos favorecidos. Desta forma, tem-se a impressão que os juízes, em sua maioria, continuam agindo como intocáveis, inquestionáveis, irrepreensíveis, infalíveis etc, dando ocasião a revoltas, desordens, medo e, obviamente, falta de justiça – e onde não há justiça não há paz. Por essas e outras o nosso país está como está. Somos viúvas da Justiça.
Faz-se necessário dizer que, no final da parábola, o juiz iníquo teme ser agredido ou assassinado pela viúva, fato que finalmente o leva a julgar sua causa e lhe fazer justiça: “Julgarei a sua causa para que ela não me moleste”. Que fique bem claro: O juiz cumpriu com seu dever apenas porque teve medo da viúva! Penso que se os magistrados de hoje não conseguem ter o devido respeito pelo povo, pelo menos medo eles precisariam ter. Talvez seja esta nossa única esperança quanto à justiça terrena em nosso país: que tenham medo de nós! Fato é que tais aspectos da narrativa bíblica também apontam pra fragilidade e transitoriedade do Poder Judiciário que, embora se apresente como um “deus todo-poderoso”, é tão vulnerável quanto qualquer outra instituição ou ser humano, a ponto de uma mulher viúva e solitária se tornar mais temível do que o próprio juiz implacável e refratário. Desta forma, surpreendentemente, e quase que de modo ambíguo, a mulher viúva deixa de ser apenas uma pessoinha desprezada e excluída pelo Judiciário e se torna um instrumento forte e eficaz de fiscalização, libertação e transformação da situação vigente. O juiz iníquo todo-poderoso acaba se curvando aos protestos de alguém que até então não lhe significava nada. O povo realmente tem poder para escrever uma nova história.
Por fim, o texto de Lucas nos inspira a lutar pelos nossos direitos face à crise do Poder Judiciário. Apesar da indiferença e da lentidão da Justiça, a mulher viúva não desistiu da sua causa, o que muito favoreceu a solução do seu problema: “O juiz pensou consigo mesmo: não temo a Deus nem respeito ninguém, mas como essa mulher insiste em me incomodar, julgarei a sua causa”. Então, se você tem sede de justiça, não desista, persevere, persista, incomode, proteste. Além disso, a lição mais importante: se até os magistrados iníquos, corruptos e eticamente comprometidos têm condições de fazer justiça, ainda que seja por medo ou outro interesse, muito mais condições tem o nosso Deus de nos socorrer e amparar quando a ele recorremos em meio às aflições deste mundo, pois que ele que é justo, bom e santo. Em relação aos inocentes, frágeis e oprimidos, Deus é “pai dos órfãos e juiz das viúvas” (Salmo 68.5). Ele nos assiste gratuitamente e é movido por amor, não por interesses particulares e por medo, como acontece com a magistratura desde a época de Jesus. Aliás, desde muito antes disso, conforme narram os profetas setecentos anos antes de Cristo aproximadamente: “As autoridades dão sentenças por dinheiro... e ainda dizem: não precisamos ter medo de nada” (Miquéias 3.11); “O juízo está longe de nós e a justiça não nos alcança; esperamos pela luz, mas eis que só há trevas; esperamos pelo resplendor, mas andamos na escuridão... o direito se retirou e a justiça foi pra bem longe; porque a verdade anda tropeçando pelas praças e aquilo que é justo não pode entrar na cidade” (Isaías 59.9-14);

            Em tempo, considerando o tom irônico e bem humorado presente neste e em inúmeros outros textos bíblicos, o evangelista aproveita para denunciar o perfil patológico e patético do Poder Judiciário. Ao mencionar o mal que a mulher-representante-do-povo poderia lhe causar, o juiz se coloca como vítima da realidade, aquele que não tem culpa de nada e que agora está sendo ameaçado, como se o povo fosse o principal responsável pelo clima de violência, injustiça e falta de paz; como se as mulheres viúvas frágeis e desamparadas é que representassem o perigo para a sociedade. Ora, os males daquela cidade eram os juízes e não as viúvas. Os magistrados, sim, pela sua omissão, presunção e dissimulação, configuravam as pessoas mais perigosas e prejudiciais àquela sociedade. Será que mudou muita coisa de lá pra cá?
               Embora haja divergências sobre o tema, é muito bom saber que ainda há magistrados comprometidos com a ética, a verdade, a justiça e a paz, e que, sejam crentes ou ateus, não se consideram superiores a Deus nem aos poderes instituídos na terra nem aos órfãos e viúvas do nosso tempo, ainda que eles sejam como cabeça de bacalhau, existe mas a gente nunca vê, especialmente quando somos viúvas pobres e preteridas.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

E se a Copa do Mundo não fosse no Brasil?

     Quanta coisa a dizer sobre a Copa do Mundo no Brasil! Questões que vão desde a importância e a magia do esporte propriamente dito até a irresponsabilidade e amadorismo dos governantes, passando pelas boas oportunidades que o país terá por causa do evento e também pelas malignas chances de desvio de dinheiro etc. Mas como já tem muita gente falando disso, vou refletir sobre outros aspectos.
            Ao ver um grande número de pessoas e entidades protestando e postando na net contra a realização desta Copa do Mundo em detrimento da construção de hospitais e investimentos na educação, por exemplo, fico pensando como seria útil e eficaz se tais mobilizações em favor da melhoria do sistema de saúde e educacional fossem feitas independentemente da Copa ser aqui ou não. Tivemos décadas e décadas para reivindicar de forma intensiva e midiática, mas não o fizemos, e tudo indica que não o teríamos feito se não fosse o campeonato mundial de futebol deste ano.
          Segundo, existem forças e interesses políticos demais sobre a mesa, e principalmente em baixo dela. Governo e oposição subestimam e hiperestimam valores e atitudes de acordo com suas conveniências e projetos que, em quase sua totalidade, não têm nenhuma relação com a justiça social, o desenvolvimento do país e a dignidade da população. E eu não tô afim de apostar nesse jogo de cartas marcadas.
       Por último, assim como tivemos muitas décadas para protestar e reivindicar, os governos e demais autoridades tiveram décadas e décadas para realizar os investimentos que o país e seu povo mais necessitam – e até agora isto não aconteceu. Pessimista ou não, tenho certeza que se a Copa do Mundo de Futebol não fosse realizada no Brasil o nosso sistema de saúde continuaria na UTI, a educação permaneceria nas trevas e o transporte público patinaria e atolaria do mesmo jeito de sempre e por tempo indeterminado.
          Concluindo, a não realização do evento em questão de modo algum seria garantia ou pré-requisito para a mudança do “nosso belo quadro social”. Se a Copa não fosse aqui, penso que continuaríamos sem hospitais, sem escolas e sem metrôs, assistindo aos jogos pela televisão, comendo pipoca e saindo pra comemorar as vitórias da seleção canarinho no meio do trânsito caótico e atrapalhando o funcionamento das escolas e dos hospitais que hoje temos. Uma série de internautas continuaria nas redes sociais falando sobre a Copa no Brasil, mas apenas para postarem “gooooooool”. Se a Copa não fosse no Brasil, a sociedade certamente ocuparia ruas e praças como está fazendo agora, porém não para protestar e reivindicar, mas sim pra ver o Neymar no telão e cantar uma música nova: “Noventa milhões sem ação, pra frente seleção, salve o Brasil”.