No texto bíblico de Lucas 18.1-8, o
evangelista apresenta a “parábola do juiz iníquo” com o principal propósito de
revelar a importância de recorrermos à intervenção divina face às aflições que
enfrentamos neste mundo.
É imprescindível notar que, ao tratar
das aflições que nos oprimem, o autor utiliza a imagem de um magistrado: “Havia em certa cidade um juiz que não temia a
Deus nem respeitava homem algum”. Tal frase indica que os juízes daquela
época se consideravam como que superiores ao poder divino e aos poderes constituídos
na terra, como se os magistrados fossem intocáveis, inquestionáveis,
todo-poderosos etc. Na mesma direção, o evangelista menciona que aquele
juiz iníquo não se importava com a causa das pessoas menos favorecidas,
desamparadas e que não tinham nada para lhe oferecer em troca: “Havia na mesma cidade uma viúva que insistia
para que o magistrado julgasse a sua causa, mas ele não a atendia...”. Ora,
se o Judiciário não levava em conta nem a pessoa de Deus nem os demais poderes
à sua volta, muito menos se importaria com aquela pessoinha insignificante que,
por ser mulher, viúva e pobre, representava um dos segmentos mais fracos e menos
favorecidos daquele contexto.
Uma pergunta apenas: Seria obra do
acaso o fato de a Bíblia associar a aflição e o desamparo do povo à atuação dos
magistrados? É óbvio que não! A exegese de Lucas 18.1-6, somada ao que temos
visto no Brasil, nos permite concluir que o Poder Judiciário dos dias de hoje,
nas mesmas palavras de Lucas, também parece não temer a Deus nem respeitar a
população como deveria, especialmente quando se trata de valorizar e atender a
causa das viúvas, isto é, dos inocentes menos favorecidos. Desta forma, tem-se a impressão que os
juízes, em sua maioria, continuam agindo como intocáveis, inquestionáveis,
irrepreensíveis, infalíveis etc, dando ocasião a revoltas, desordens, medo e,
obviamente, falta de justiça – e onde não há justiça não há paz. Por essas e
outras o nosso país está como está. Somos viúvas da Justiça.
Faz-se necessário dizer que, no final
da parábola, o juiz iníquo teme ser agredido ou assassinado pela viúva, fato
que finalmente o leva a julgar sua causa e lhe fazer justiça: “Julgarei a sua causa para que ela não me moleste”.
Que fique bem claro: O juiz cumpriu com seu dever apenas porque teve medo da
viúva! Penso que se os magistrados de hoje não conseguem ter o devido respeito
pelo povo, pelo menos medo eles precisariam ter. Talvez seja esta nossa única esperança
quanto à justiça terrena em nosso país: que tenham medo de nós! Fato é que tais
aspectos da narrativa bíblica também apontam pra fragilidade e transitoriedade do Poder Judiciário que, embora se apresente como um “deus
todo-poderoso”, é tão vulnerável quanto qualquer outra instituição ou ser
humano, a ponto de uma mulher viúva e solitária se tornar mais temível do que o
próprio juiz implacável e refratário. Desta forma, surpreendentemente, e quase que de modo ambíguo, a
mulher viúva deixa de ser apenas uma pessoinha desprezada e excluída pelo Judiciário
e se torna um instrumento forte e eficaz de fiscalização, libertação e
transformação da situação vigente. O juiz iníquo todo-poderoso acaba se curvando
aos protestos de alguém que até então não lhe significava nada. O povo
realmente tem poder para escrever uma nova história.
Por fim, o texto de Lucas nos inspira
a lutar pelos nossos direitos face à crise do Poder Judiciário. Apesar da
indiferença e da lentidão da Justiça, a mulher viúva não desistiu da sua causa,
o que muito favoreceu a solução do seu problema: “O juiz pensou consigo mesmo: não temo a Deus nem respeito ninguém, mas
como essa mulher insiste em me incomodar, julgarei a sua causa”. Então, se
você tem sede de justiça, não desista, persevere, persista, incomode, proteste.
Além disso, a lição mais importante: se até os magistrados iníquos, corruptos e
eticamente comprometidos têm condições de fazer justiça, ainda que seja por
medo ou outro interesse, muito mais condições tem o nosso Deus de nos socorrer
e amparar quando a ele recorremos em meio às aflições deste mundo, pois que ele
que é justo, bom e santo. Em relação aos inocentes, frágeis e oprimidos, Deus é
“pai dos órfãos e juiz das viúvas” (Salmo 68.5). Ele nos assiste gratuitamente
e é movido por amor, não por interesses particulares e por medo, como acontece com
a magistratura desde a época de Jesus. Aliás, desde muito antes disso, conforme
narram os profetas setecentos anos antes de Cristo aproximadamente: “As autoridades dão sentenças por dinheiro...
e ainda dizem: não precisamos ter medo de nada” (Miquéias 3.11); “O juízo está longe de nós e a justiça não
nos alcança; esperamos pela luz, mas eis que só há trevas; esperamos pelo
resplendor, mas andamos na escuridão... o direito se retirou e a justiça foi
pra bem longe; porque a verdade anda tropeçando pelas praças e aquilo que é
justo não pode entrar na cidade” (Isaías 59.9-14);
Em
tempo, considerando o tom irônico e bem humorado presente neste e em inúmeros outros
textos bíblicos, o evangelista aproveita para denunciar o perfil patológico e
patético do Poder Judiciário. Ao mencionar o mal que a mulher-representante-do-povo poderia lhe causar, o juiz se coloca como vítima da realidade, aquele que
não tem culpa de nada e que agora está sendo ameaçado, como se o povo fosse o
principal responsável pelo clima de violência, injustiça e falta de paz; como se as
mulheres viúvas frágeis e desamparadas é que representassem o perigo para a
sociedade. Ora, os males daquela cidade eram os juízes e não as viúvas. Os
magistrados, sim, pela sua omissão, presunção e dissimulação, configuravam as
pessoas mais perigosas e prejudiciais àquela sociedade. Será que mudou muita
coisa de lá pra cá?
Embora haja divergências sobre o tema, é muito bom saber que ainda há magistrados comprometidos com a ética, a verdade, a justiça e a paz, e que, sejam crentes ou ateus, não se consideram superiores a Deus nem aos poderes instituídos na terra nem aos órfãos e viúvas do nosso tempo, ainda que eles sejam como cabeça de bacalhau, existe mas a gente nunca vê, especialmente quando somos viúvas pobres e preteridas.
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